Recordações de Custódia - Autor José Carneiro


Avistados de longe, os coqueiros do sítio de Dona Anita Remígio indicavam que Custódia era ali. Plantada no sertão bravio de Pernambuco, banhada pelo Rio Moxotó, na região homônima, foi lá onde nasci e passei a infância e juventude. Um lugar aprazível em que vivi os mais risonhos e felizes dias de minha existência. 

Dela guardo muitas e gratas recordações. É bom e faz bem volver ao passado, pelo prazer da volta e pela necessidade de rever atitudes e refazer decisões. E mais, por que dá gosto falar das coisas belas do mundo e das passagens alegres da vida. E mais ainda, por que as coisas boas devem ser lembradas e revividas. Daí a razão deste escrito, que tem como escopo lembrar fatos, lugares e pessoas de minha terra, para a preservação da sua história. A história é a vida e a alma de um povo.

Antes de tudo me vem a imagem da Igreja Matriz de São José, considerada um dos templos mais belos da região. Nela iniciei minha caminhada católica, apostólica, romana que continuo até o presente momento. Não entendo um homem sem espírito religioso e sem Deus no coração. A fé é um dom divino e deve ser e alimentada permanentemente pela esperança e caridade.

A Fonte de Sabá, vertente da Serra da Torre, é o ponto culminante do Município. Sua água pura e cristalina, rica em sais minerais é, segundo análise do Departamento de Saúde do Estado, uma das mais completas de Pernambuco. Um fato curioso, que chama a atenção de todos, é que, um pouco acima da fonte, em torno de uns duzentos metros, há uma outra fonte de água magnesiana. Até hoje, em que pesem as inúmeras tentativas, a fonte nunca foi explorada devida e convenientemente. Não sei se pelo seu difícil acesso, se por deficiência de vazão ou se por falta de meios financeiros. É lamentável, sob todos aspectos, especialmente pela frustração da bíblica rainha que a ela emprestou o nome. Que o diga o sábio rei Salomão.



O Bar Fênix, de propriedade do competente e empreendedor tabelião Né Marinho, era o principal ponto de atração da cidade, onde se realizavam os bailes e a rapaziada se reunia para comes e bebes, jogar sinuca, falar das aventuras amorosas, ouvir as lorotas de Jovino Costa Leão e os discursos de Catonho Florêncio. Mas o que mais empolgava a turma da fuzarca eram os bailes, mormente pela oportunidade de ter as moças nos braços, sentindo o arfar dos seus seios e as batidas dos seus corações. E, para completar o quadro, no sereno, as vitalinas, com olhares maliciosos, acompanhavam os dançarinos nos seus rodopios. Outros tempos! Outros costumes!



Um lugar bastante movimentado era a Farmácia Pereira do farmacêutico licenciado Joaquim Pereira, onde havia o único rádio da cidade, que se enchia de gente todas as noites para ouvir o Repórter Esso, programa radiofônico de maior audiência nacional, com as notícias da 2ª Guerra Mundial (1939 a 1945), deflagrada pela Alemanha nazista sob o comando do sanguinário Adolfo Hitler, com o holocausto de mais de vinte milhões de judeus e que culminou com a deflagração dos bombardeios atômicos pelos Estados Unidos, destruindo as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki, que, ainda hoje, causam danos. 

E, nas noites das quintas-feiras, a farmácia se enchia novamente de gente para assistir ao consagrado programa de rádio de Jararaca e Ratinho. Joaquim Pereira, como um bom pedreiro, de compasso e esquadro à mão, sabia como conservar intactas as colunas que sustentam as obras do Grande Arquiteto do Universo. Rendo as minhas homenagens ao velho farmacêutico pelo espírito de benevolência e solidariedade. 

Houve uma época em que os estudantes de Custódia tinham predileção pelo Aprendizado Agrícola de São Bento. Ficava localizado no Município de Vitória de Santo Antão-PE., em meio a campos verdejantes e floridos. Era um colégio agrícola, constituído de quatro imponentes prédios, com linhas arquitetônicas de rara beleza, entre os quais dois com mais de um pavimento, neles funcionando diretoria, cozinha, refeitório, dormitórios, salas de aula, sanitários e banheiros, enfermaria, gabinetes médico e odontológico, aposentos dos professores, quartos para internamentos, sapataria, rouparia e um suntuoso parlatório. Sua entrada, de fino gosto, era uma bela alameda margeada de palmeiras imperiais. 

Os eucaliptos, altos, lisos, linheiros, perfumavam o ambiente. Tudo muito bonito e bem cuidado. Havia um extenso pátio, inteiramente gramado e cheio de rosas e flores. Um lugar verdadeiramente encantador. Estabelecimento federal de ensino, gratuito, propiciava aos alunos, além de estudos teóricos e práticos, comida, roupas, calçados e tudo o mais necessário a uma boa formação educacional. 

De características militares e rígida disciplina, tinha uma banda marcial completa e primava pela ordem unida, proporcionando desfiles espetaculares. Fundado por Apolônio Salles, Senador por Pernambuco, um político atuante e de grande prestígio, que teve ativa participação no funcionamento da hidrelétrica da Cachoeira de Paulo Afonso. As atividades desenvolvidas pelos alunos eram de uma magnitude fora do comum. 

Na parte agrícola havia extensas áreas de terras massapé, com cultivo de milho, feijão, melancia, abóbora, mandioca, macaxeira e, especialmente, uma estação experimental de cana-de- açúcar com predominância das variedades caiana, demerara, p.o.j. e fita, a qual, pela reconhecida importância, era alvo, todos os anos, de aulas prática para os alunos de agronomia do Recife. Um apiário modelo, de abelhas italianas, com cerca de duzentas colméias, produzindo o mais puro mel centrifugado. 

Um aviário bem estruturado, com criação de galinhas das raças leghorn brancas, poedeiras, e ligtht sussex vermelhas, de corte, chocadeiras e pinteiros, com um plantel de mais de mil aves, considerável produção de ovos e pintos comercializados na capital do estado. Um estábulo, com criação de gado das raças holandesas e red-poli. 

Uma pocilga que primava pelo asseio. Uma horta, com cultivo de flores, verduras e hortaliças de várias espécies. Um verdadeiro festival de operações. Com um agrupamento em torno de duzentos alunos, tinha como matérias principais as cadeiras de Veterinária e Zootecnia, lecionadas por Dom Agostinho Ikas, frade beneditino alemão do mosteiro local, de reconhecida cultura humanística. 

Dispondo de um serpentário, o estudo do ofidismo era a preferência dos alunos, com muitos deles criando cobras e mantendo intercâmbio com o Instituto Butantã de São Paulo. 

Ao lado do colégio o Mosteiro de São Bento da ordem dos Beneditinos. O prédio e a capela de tamanha imponência lembravam os similares da Europa. O carrilhão, composto de enormes sinos, era um número à parte, cuja sonoridade era ouvida a léguas de distância. Até hoje não vi em lugar nenhum algo do gênero que o igualasse. 

Os alunos tomavam parte nas cerimônias religiosas do convento, muitos deles pertencentes à Congregação Mariana, dos moços, movimento católico correlato à Associação das Filhas de Maria, das moças. Fazia gosto ouvir os piedosos cantos gregorianos pela voz dos velhos frades. 

Entre os alunos de Custódia, cito José Florêncio, Murilo Remígio, Valdemar Pires, Milton Aleixo, José Carneiro, Expedito Maranhão, Demócrito Queiroz, José Lopes, Alcântara e Amadeu Gonçalves, salientando que somente José Florêncio, Murilo Remígio, Milton Aleixo e José Carneiro conseguiram concluir o curso de Técnico Agrícola. 

Assim era o velho e tradicional Aprendizado Agrícola de São Bento, do qual guardo grandes e inesquecíveis lembranças. Nunca entendi a razão da demolição daquelas obras para a construção da barragem de Tapacurá. O Aprendizado tinha ares de universidade. 

Na mesma fase o Ginásio Cristo da Diocese de Pesqueira, na época sob o pastoreio do Bispo Dom Adalberto Sobral e dirigido pelo Padre João de Sousa Lima, natural de Tacaratu-PE., sacerdote à frente do seu tempo, depois Bispo e Arcebispo, foi outro centro de atração dos estudantes de Custódia. 

O Cristo Rei, pela capacidade e dedicação dos seus professores e, notadamente, pela qualidade do ensino, era apontado como um dos melhores educandários do estado. Por ele passaram Ernesto Queiroz Júnior, José Elídio de Queiroz, José Carneiro, José Veríssimo e Carlos Pires, evidenciando que José Pereira Neto e suas irmãs Noêmia e Joany Pereira foram estudar no Colégio Americano Batista do Recife. Sílvio Carneiro, Pedro Pereira, Adalberto Lopes, Antônio Medeiros, Jovenildo Pinheiro, Fernando Florêncio, José Melo, Fernando José, Paulo Peterson, Jailson Vital, Jorge Remígio, Airton Bezerra, Hélio e Herbet Pires, Assis Moura, João Elizeu, Luizito Epaminondas e Zezito Caju, entre outros, vieram depois. 

Quanto às moças, das quais menciono Djanira, Maria do Carmo e Dondom Pires, Neuza, Neuma e Darcira Florêncio, Elizete e Zefinha Lopes, Zezita e Gracinha Queiroz, Leny, Vanise e Laíse Pires, Cacilda Andrade,Terezinha Amaral, Dineuza Carneiro, Sevy Gomes, Jussara Burgos, Maria José Amaral (Zezé), Odete Andrada, Ednalva Marinho e Sila Veríssimo se distribuíram pelos colégios de Triunfo, Pesqueira, Caruaru e Vitória de Santo Antão. 

Como se vê, os jovens de Custódia já naquela longínqua época deixavam sua terra e ganhavam o mundo em busca de novos horizontes, numa demonstração de fé e esperança no porvir.

O Aprendizado Agrícola de São Bento e o Ginásio Cristo Rei de Pesqueira foram os melhore sonhos e as maiores realizações da minha existência. Daí a razão destas manifestações sentimentais, que são, antes de tudo, um depoimento do muito que representaram e ainda representam na minha vida pública e privada.

Não resisto à tentação de prestar merecida homenagem a Carlos Alberto dos Santos Lopes pelo seu nobre idealismo, em se dedicando de corpo e alma na feitura e publicação de livros, os melhores amigos. 

Embora não seja ele filho de Custódia é, no entanto, um custodiense de coração, tendo nela vivido boa parte de sua vida e a ela oferecendo o que de melhor um filho pode dar à terra mãe. Tenho-o, assim, como o novo Mecenas caboclo das caatingas do Pajeú e Moxotó. Pois que,”bendito o que semeia livros... livros à mão cheia e manda o povo pensar”, como pontificou Castro Alves. 

Apraz-me encerrar este arrazoado mostrando Custódia na melhor fase de desenvolvimento econômico da sua história, na década de 1935 a 1945, em que era o município maior produtor de algodão e mamona da região. Contava com duas bolandeiras, uma fábrica de tanino, única da espécie no país, exportando o produto para o exterior, cinco usinas de caroá, pioneira no ramo, sobressaindo-se a Fazenda São Gonçalo de propriedade do caruaruense Aurélio Vasconcelos, com grande extensão de terras, explorando a agricultura e o criatório, além da maior e mais bem aparelhada usina de caroá do território, dando-se ao luxo de dispor de um teco-teco e de uma moderna aparelhagem de transmissão radiofônica.

Custódia sempre foi uma cidade em constante desenvolvimento social e econômico. Rica em folclore e afeita à prática do saber e da cultura, tem dado filhos ilustres, muitos deles ligados à literatura como escritores, poetas, artistas, além de bons profissionais nas mais variadas áreas do conhecimento. De clima ameno e agradável, com gente simples e hospitaleira, é uma terra boa de se viver em paz e sossegadamente.

Custódia, sou um feliz escravo do teu passado!

José Carneiro (In Memorian)

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