Paisagens da memória - A feira

  Tela do artista Edmar Salles - Feira de Custódia

por
Fernando José Carneiro de Souza
Custódia-PE
Dezembro/2011
            
No início dos anos 60 a pequena cidade de Custódia, como toda cidadezinha do sertão pernambucano, vivia em relativo isolamento quebrado apenas pelas ondas do rádio (Rádio Cardeal Arcoverde e Rádio Pajeú de Afogados da Ingazeira). Ainda não chegavam aos remotos lugarejos deste sertão os jornais e a televisão. Esse meio isolamento preservou uma cultura ímpar. Resquícios da idade média ainda podiam ser sentidos na religião, no comportamento, nas paródias, nas histórias de cordel, nos cantadores de viola, nas ladainhas e nos cantos populares. Tudo isso sintetizado num acontecimento extraordinário: a feira. 

No seu fundamento histórico, versa uma das tradições que Custódia nasceu da necessidade de um ponto de apoio entre o vale do Pajeú e o vale do Moxotó. 

Havia necessidade de uma ligação por terra entre um vale e outro. No intercurso entre essas duas ribeiras, surgiu a estalagem de Dona Custódia, propiciando aos tropeiros uma pausa restauradora do cansado caminhar nas veredas sertanejas da época. O crescimento rápido da localidade deveu-se à sua localização devido à passagem de almocreves e viajantes, pois Custódia tem grande parte do seu território encravado no vale do Moxotó e uma pequena porção no Pajeú (Pajeú: lendário rio sertanejo e um dos poucos rios do mundo que tem parte do seu curso correndo em sentido contrário ao mar). Isso favoreceu o aparecimento de pessoas de outras localidades para habitar o sítio. Foram erguendo-se habitações e novos comércios. Com isso o povoado foi se formando. Os fazendeiros mais abastados ergueram casas na vila para virem aos domingos à missa e fazerem compras. Custódia cresceu das feiras livres que até os dias atuais são de grande importância para sua economia. 

Aos domingos ia dormir com ansiedade do dia seguinte: era a segunda, dia da feira! Dia extraordinário, atípico, o único em que qualquer um podia se perder na multidão. A monotonia era regra, quebrada apenas por esse evento semanal que virava a cidade de ponta cabeça. 

Logo cedo saltava da cama com o barulho daquele acontecimento que toda semana quebrava a quietude e pasmaceira do lugarejo. Tomava um café rápido e corria para a rua. Nessa época, para mim o tempo era tão relativo quanto à teoria de Einstein. O tempo não existia!(Oh que saudade). Primeiro ia namorar os caçoás de frutas que vinham dos brejos de Triunfo, nos contrafortes da Serra da Borborema. Depois corria para o pátio do bar Fênix onde malandros e otários se enfrentavam nas mesas de esplandim e bacará. Passava horas absorto naquele jogo de malandragens em que os competidores diziam frases manhosas. 

Em seguida descia pela Rua Nemésio Rodrigues, onde no seu terço final ficava a feira das verduras e, incompreensivelmente, no meio daquelas barracas e toldos verdes encontrava-se a barraca do raspa-raspa cuja coleção de litros de cores vivas e atraentes prendiam minha atenção (naquela época em cada rua comercializava-se um só tipo de produto ). Uma grande pedra de gelo era retirada de um caixote, envolta por pó de madeira, usado como isolante. Esse gelo era raspado, colocado num copo e misturado com essências de cores vivas. Perdia horas olhando aqueles movimentos (ou ganhava). 

Um dos mais interessantes era o homem da cobra. Falava o dia todinho, mas não mostrava a cobra. Esta ficava num caixote de madeira no meio da roda formada pelos matutos que tão ansiosos quanto eu esperavam pelo momento máximo. Esse intervalo de expectativa e espera era maliciosamente aproveitado para a venda da banha do peixe boi e outros produtos afins, destinados à cura de todos os males. 

O ventríloquo me encantava, pois era incompreensível e ao mesmo tempo fantástico para um menino de sete anos que um boneco de madeira falasse. Porém sua voz até hoje repercute em minhas lembranças como um Pinóquio sertanejo dos contos de fadas. 

A dupla de irmãos cegos. Um tocava sanfona, o outro, pandeiro. Formavam uma enorme roda na Praça Padre Leão onde interpretavam músicas do cancioneiro popular. Uma me marcou para sempre. A música chama-se “Fogo do Paraná”. Uma história trágica em que uma família de imigrantes sertanejos é envolvida por um grande incêndio e o caçula da família, Toinho, morre nesse sinistro. Até hoje, jamais, vi interpretação igual. 

A malícia do vendedor de remédios, porque antes de apresentar o produto, ele nos deliciava com lúdicas brincadeiras para atrair os curiosos. Plateia formada, enormes lombrigas enroladas e expostas em garrafas de vidros transparentes eram apresentadas e impressionavam os nativos. (Até hoje sou reticente em comer macarrão). Cenas medonhas dessas verminoses eram expostas em páginas retiradas de revistas diversas sem um contexto lógico, mas que impressionavam e ajudavam a vender os medicamentos contra vermes. 

A poética do declamador de cordel. Enorme multidão se formava em torno desse poeta popular. Muitos até analfabetos, mas em poses de poeta dissertavam os versos simples e envolventes das fantásticas histórias do imaginário sertanejo. Eram versos modestos, às vezes com rimas pobres, tendo grande apelo emocional e começando por temas apaixonantes. Lembro que ouvi numa das vezes em tom teatral a declamação do cordel “A chegada de Lampião no inferno”. O próprio título já impressionava e o desenrolar da história nem se fala. O contador gesticulava tentando dar uma interpretação verossímil aos fatos narrados. No intervalo entre os versos, o orador tecia alguns comentários aguçando ainda mais a curiosidade dos ouvintes para o desenrolar da trama. Contudo a história não chegava ao fim. No melhor da narrativa, em que praticamente todos prendiam a respiração para ouvir o desfecho final, a leitura era interrompida causando frustração momentânea aos espectadores. Quem quisesse saber como terminava a história, teria de comprar o cordel. Que decepção! Eu saía caminhando absorto em devaneios imaginando qual seria o grande final. Naquela época, através do cordel, era como as notícias de fatos importantes chegavam às comunidades rurais. Por muito tempo foi um dos meios de comunicação entre essas populações. 

O romantismo da malandragem. Os malas me fascinavam pela destreza e astúcia com que ludibriavam os mais incautos. Nunca usando a violência, apenas a lábia. “Essa ganha, essa perde” é a lembrança mais viva que tenho dos irmãos Chia e Dadá pela sua nobre arte de “ganhar o outro”. Quando questionados sobre a lisura de suas ações, respondiam com presteza que a intenção do adversário era derrubá-los. Com esse jogo de cartas marcadas, eram invencíveis e sobreviviam dessa prática. 

As bancas de rolos de fumo de Arapiraca. Enfileiradas, ficavam em frente ao bar da sinuca de Jurandir. Atraía-me o olhar aqueles enormes rolos negros de fumo parecendo cobras pretas enrodilhadas. Às vezes com os colegas fazíamos cigarro de fumo e íamos fumar escondido. O efeito entorpecedor nos causava náuseas e o forte cheiro nos deixava impregnados. A volta para casa era adiada para que ninguém percebesse. Ao chegar em casa, todos já tinham almoçado. Levava uma tremenda bronca, como acontecia toda segunda-feira. 

Hoje, nos anos dois mil e tanto, a feira subsiste. Ainda é de grande importância, porém sofreu modificações impostas pelas transformações que o mundo moderno impõe. Rareiam essa miríade de tipos característicos cuja magia de suas atuações em breve ficará como uma simples lembrança. 

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