Rua Padre Leão nº 49
Por: Vanise Rezende
Abril/2020
Muito cedo meu pai herdara o cartório do meu avô Serapião. Tinha uns 20 anos. O cartório que conheci ficava na rua defronte da minha casa, perto do bar Fênix. Recordo o meu pai assinando livros enormes, nos quais se fazia o registro das escrituras, tudo cuidadosamente manuscrito por seus auxiliares. Um deles era o Sr. Manuel Rodrigues, que não sei se era custodiense, mas ali residia. Quando meu pai se aposentou, levou-o para trabalhar com João Roma, no Recife.
O meu interesse pela escrita deve ter vingado ali, enquanto via meu pai no cartório, com os seus colaboradores. Seus traços biográficos foram descritos, de forma irretocável, pelo consultor e escritor custodiense José Melo, aqui neste blog.
Aprendi a gostar de música ouvindo as canções entoadas por minha mãe, Ester, enquanto pedalava a sua máquina Singer, costurando as roupas dos filhos. Lembro
que, naquela época, além da roupa para os filhos, ela também cortava e finalizava toalhas de banho e lençóis, com bicos ou crochês, talvez porque ainda não era tão simples encontrá-los já prontos.
Do seu lugar de trabalho ela acompanhava tudo. Quem não obedecia ficava no quarto, de castigo, sem doce de leite nem cocada, sem pirulito nem bolo de goma.
Nos cuidados da casa éramos apoiados por duas Marias.
Maria Grande era introvertida, não gostava de adulações e costumava ser atenciosa e calma. O seu espaço na casa era a grande cozinha, com um fogão de lenha no centro, tendo ao lado uma despensa. Se bem me lembro poderia afirmar que Maria Grande viera de um dos Quilombolas da região.
Para me aconchegar no carinho de Maria Grande, eu gostava de ir à cozinha na hora que ela almoçava. Quase sempre lhe pedia um bolinho de feijão com farofa, amaciado em suas mãos, a coisa mais gostosa que eu experimentava da sua ternura.
A outra – chamada Maria Pequena – viera dos sítios do entorno, e coadjuvava minha mãe botando sentido nas crianças, como se usava dizer entre nós. Dela me recordo o lava-pés, na área interna da casa, que se abria para o quintal. Era lá que ficava a bacia e a jarra de ágata, com desenhos coloridos. Chamávamos de lavatório, e nos servia para o ritual diário de quando acordávamos, quando íamos sair e quando voltávamos, para tirar a poeira da rua.
Na memória espacial da minha infância, nossa casa era imensa, cheia de quartos, com duas salas grandes, a de estar e a das refeições, ligadas por um corredor que ladeava os primeiros quartos.
Nasci em 1938. Portanto, estamos falando dos longínquos anos ‘40, tempos do ditador Getúlio Vargas, sob a influência do fascismo de Hitler e Mussolini; e da Coluna Prestes no Brasil, sob a influência do Partido Comunista da União Soviética. Ainda me dói o coração, ler a história de Olga, a amada de Carlos Prestes, que fora deportada daqui para a Alemanha no período em que, ser judia lá – como ela era – significava a morte. Era um “presente” que Vargas mandava, ajoelhando diante das loucuras de Hitler. Interessante, a história sempre teima em se repetir...
Vi o tempo passar, e tudo caminhar para o poço das lembranças.
Mais tarde – quando eu só ia a Custódia no período das férias escolares – meu pai fez reformas na nossa casa, criando uma outra fachada. Anos depois ele se aposentou e trouxe a família para viver no Recife. Foi nesta época que fui estudar na Itália – 1962. E, como tudo muda em nossa vida, a casa já não era nossa e, infelizmente, foi transformada numa nova construção. Hoje, nas fotos da Rua Padre Leão não mais encontro o pé de fícus (ou era uma algaroba?) na frente do que era a velha casa. Nem mais o chão precioso de onde vivi, em Custódia.
Depois que me casei – em dezembro de 1970 – ainda fui, com Luís Carlos e as três filhas, para fazê-los conhecer a saudosa paisagem da minha infância. Se bem me lembro, na ocasião visitamos a família de Teté – minha grande amiga de infância e, também, o Sabá. As fotos que tiramos são pouco ilustrativas, como eram as fotos de então. Mas a velha casa da Rua Padre Leão nº 49 ainda continua intacta, nos guardados da minha memória.
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